Alunos da rede municipal do Recife podem ficar sem livros didáticos
de várias disciplinas por três anos caso a bancada cristã da Câmara de
Vereadores consiga proibir o uso de obras que citam questões de gênero e
homossexualidade. Os parlamentares pediram à prefeitura a retirada dos
livros distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) que tratam de
diversidade sexual. O Executivo local defende o uso dos títulos e avisa
que não arcará com a reposição caso as obras sejam realmente proibidas.
Em nota, o MEC afirma que não há possibilidade de substituição dos
exemplares.
No centro do problema está um livro de ciências para alunos do 5º ano
do ensino fundamental, cuja idade regular é 10 anos. No capítulo sobre
sexualidade do ser humano, o livro Juntos Nessa 5, da editora
Leya, traz dois parágrafos contestados pelos vereadores. O livro destaca
que "faz parte da sexualidade conhecer a si mesmo e aos outros, e os
comportamentos que estão relacionados à identidade sexual". A explicação
vem em outra parte da mesma página - identidade sexual quer dizer
"identificar-se com o sexo masculino ou com o sexo feminino".
Há
ainda outro trecho que fala da união homoafetiva. "Entre os
relacionamentos conjugais, existem casais formados por um homem e uma
mulher e casais formados por pessoas do mesmo sexo". Ao lado da
explicação, uma foto de família formada por mãe, pai, uma menina e um
garotinho, o único negro do grupo.
Os principais agentes da
cruzada contra os livros didáticos são os vereadores Luiz Eustáquio
(Rede) e Carlos Gueiros (PSB). Eustáquio chegou a levar um exemplar do
Juntos Nessa 5 ao plenário da Câmara dos Vereadores para "mostrar o
conteúdo ensinado em sala de aula".
"A questão de homofobia,
essa questão de as pessoas terem de ser respeitadas como elas são, eu
ensino isso aos meus filhos. É diferente da questão que está sendo
ensinada no livro. Ela induz que você vai escolher se é masculino ou
feminino, e é sobre isso que tenho plena discordância. E principalmente
você ensinar questões de sexualidade para crianças a partir dos 6 anos
aos 10 anos de idade. Eu acho que esse é um papel dos pais", afirma.
Evangélico da Assembleia de Deus, o vereador é autor de dois
requerimentos endereçados ao prefeito do Recife, Geraldo Júlio (PSB),
sobre o tema. Um deles pede informações sobre todos os livros entregues
às escolas municipais, incluindo quantidade e obras. A intenção, segundo
ele, é criar uma frente parlamentar para analisar todas as obras e
indicar quais podem ser usadas pela prefeitura. O segundo requerimento
solicita a retirada de todo o material didático que contenha qualquer
menção a gênero da rede de ensino.
De acordo com o Ministério da
Educação (MEC), foram distribuídos 623 livros do aluno e 23 manuais do
professor do livro de ciências Juntos Nessa (5º ano) para dez escolas da rede municipal do Recife.
O vereador Carlos Gueiros também entrou na briga para proibir o uso do
livro nas escolas. Autor do Projeto de Lei de nº 26/2016, ele quer não
só proibir o título como "outros meios definidos que versem sobre a
ideologia de gênero e diversidade sexual".
Iniciada na Câmara de
Vereadores, a polêmica já tomou proporções estaduais. Na Assembleia
Legislativa de Pernambuco (Alepe), o deputado Joel da Harpa (PROS),
diácono da Igreja Batista, também apresentou projeto de lei pedindo a
proibição dos livros. O PL 709/2016, publicado no Diário Oficial do
estado no dia 8 de março, impede não só o uso do material didático como o
ensino de qualquer tema semelhante.
"Nós entendemos que o povo
brasileiro, a grande maioria, não aceita a orientação da ideologia de
gênero sobretudo nas escolas e principalmente no ensino fundamental.
Vendo essa grande proporção de pernambucanos que não aceita a entrada da
ideologia de gênero nos planos estaduais de educação, até porque o
próprio plano na questão de gênero foi rejeita na Assembleia, então
apresentamos essa proposta para que a ideologia fique de fora de uma vez
por todas nas escolas", justifica.
Joel da Harpa nega que seja
homofóbico. "Não vejo dessa forma até porque eu acho que qualquer tipo
de preconceito deva ser combatido. Seja relativo a cor, seja
homossexual, qualquer tipo de preconceito", disse.
"Se o cidadão
resolveu ser homossexual é um direito que assiste a ele e nós devemos
respeitar e abraçar e amar essas pessoas. O que a gente combate é a
ideologia de gênero para as crianças nas escolas. O que eu acredito é
que a ideologia de gênero é um incentivo à homossexualidade."
Diretora defende a escolha do livro
Na rede de ensino do Recife, a Escola Municipal Abílio Gomes foi uma das que escolheu o Juntos Nessa 5
para as turmas de 5o ano do ensino fundamental. A instituição, que na
avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2013
teve a nota mais alta entre as unidades municipais do Recife, fica na
comunidade Entra Apulso, uma região pobre do bairro de Boa Viagem, zona
sul da capital pernambucana. Com um exemplar nas mãos, a diretora Marta
Beatriz de Araújo critica a versão dos parlamentares sobre o conteúdo do
livro.
"O livro não estimula, não incita, simplesmente cita que
existem casais formados por pessoas do mesmo sexo. Que se identificam
com pessoas do mesmo sexo. Isso não é um estímulo à escolha, é a
constatação de um fato que tem na sociedade. Nós, enquanto educadores,
não podemos nos furtar do dever de ter na sala um espaço de discussão, e
não estímulo. O aluno tem direito a ter esse espaço de discussão",
defende Marta Beatriz, explicando que trata a questão pelo viés do
combate ao preconceito e à homofobia.
A gestora não é a única a
discordar da intenção dos vereadores. Em uma das salas do 5º ano, a
professora Luci França pede licença à turma para receber a diretora.
Enquanto as crianças fazem um exercício de um dos livros fornecidos pelo
Ministério da Educação, Luci é rápida em dar a sua opinião ao saber da
reportagem.
"Hoje a preocupação maior em termo de educação seria
justamente com essa geração de crianças com microcefalia. Fazer um
projeto para preparar educadores para daqui a cinco anos receber essas
crianças, e não se preocupar com questão de gênero. Porque aqui na
escola o trabalho que a gente faz é de respeito às diferenças. Um papel
de cidadania, e não de interferir na opção sexual, porque esse tipo de
orientação cabe à família. A escola orienta os alunos a respeitar a
opção dos outros", afirma.
A diretora diz que ficou sabendo da
tentativa de impedir o uso do material didático no dia em que fazia a
reunião de entrega dos exemplares para os alunos. Para ela, os
vereadores desrespeitam o trabalho da equipe da escola ao tentar retirar
os livros da rede municipal. "A gente não fez [a escolha]
aleatoriamente. Paramos para analisar livro por livro, coleção por
coleção, e não era uma editora só, eram várias. Cada uma chegava com sua
caixa de material e a gente analisava para poder escolher os livros por
disciplina e por ano. Então é uma coisa trabalhosa. Para depois de tudo
isso vir uma pessoa e achar que pode desmanchar um trabalho de uma
equipe? Acho complicado isso. Quer dizer, eu como professora não posso
escolher meu material de trabalho? É o fim do mundo".
A Agência Brasil ligou para vários números da Editora Leya, que tem os direitos sobre o livro, mas não conseguiu contato.
Os livros foram distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) por meio
do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A cada ano é aberto um
prazo para que escolas públicas de todo o país escolham as obras que vão
usar em cada uma das séries. Os livros valem por três anos e são
repassados de aluno a aluno durante esse período.
A diretora
critica ainda a falta de compromisso dos vereadores com o uso do
dinheiro público. "Os livros são fruto de dinheiro de impostos nossos.
Meu, seu, de todos nós. Eles foram comprados para serem usados durante 3
anos. Se eles forem recolhidos quem vai repor os livros? O vereador vai
repor com recurso próprio ou vai se fazer nova compra com recursos
públicos?", questiona. "Acho que tem que pensar em propostas efetivas
voltadas para a educação, que tragam retorno efetivo. Isso não vai
trazer nenhum retorno, ao contrário: está se tirando material didático
do aluno. Acho importante que se faça esse questionamento."
A
Escola Municipal Abílio Gomes luta há 12 anos para conseguir uma sede
maior e abrir mais vagas para as crianças da comunidade. "Corta meu
coração, mas todos os dias eu nego vaga, porque tem uma capacidade
máxima que as salas comportam para garantir o mínimo de conforto para os
alunos", conta Marta Beatriz. Atualmente, as quatro salas de aula que
existem no prédio foram divididas em sete para comportar todos os 310
estudantes - 70 deles frequentam o 5o ano do ensino fundamental.
Fonte:Uol
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