No Ceará, um currículo explica o que cada escola deve ensinar em português e matemática para estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental. Em Goiás, outro documento especifica o que deve ser apresentado aos alunos de todas as etapas e em todas as disciplinas, com exceção de artes e educação física. Em Santa Catarina, a proposta curricular de 1980 acaba de ser revisada para descrever aos professores a filosofia da rede, fundamentada nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNs).
O cenário curricular das escolas brasileiras é diverso. Desde 2010, redes de ensino que não tinham uma discussão organizada sobre o tema têm se movimentado, cada uma a seu modo, para conceber ou reformular seus próprios currículos, segundo duas pesquisas recentes. Um estudo realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), sobre os currículos para o segundo ciclo do ensino fundamental, e outro da Fundação Carlos Chagas (FCC), sobre os documentos para o ensino médio, mostram justamente o crescimento dessas iniciativas nas redes estaduais nos últimos cinco anos. Em relação à etapa do 6º ao 9º ano, por exemplo, 15 novos documentos elaborados pelos estados entraram em vigência nesse período (veja o infográfico na página 20).
As primeiras versões das pesquisas, encomendadas pela Fundação Victor Civita, foram apresentadas no mês de julho durante o "Seminário Internacional sobre a Base Nacional Comum: o que podemos aprender com as evidências nacionais e internacionais", realizado pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) em Brasília, no bojo das discussões sobre a construção da Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNC), que está sendo coordenada pela Secretaria de Educação Básica (SEB), do Ministério da Educação (MEC).
A Base Nacional Comum deverá orientar todas as escolas do Brasil na organização do currículo e nas referências de conteúdo para cada etapa de ensino a partir de julho de 2016. E para debater como isso será feito, o MEC levará em conta as experiências em curso nos estados e municípios, segundo o secretário de Educação Básica, Manuel Palácios. Uma consulta feita aos gestores e documentos de redes no ano passado, com a mediação do Consed e da Undime, está em análise para a construção da proposta, segundo informou de a assessoria de imprensa do MEC à revista Escola Pública.
A formulação da base está prevista nas estratégias 2.2 e 3.3 do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado no ano passado. Segundo a lei, União, estados, Distrito Federal e municípios devem pactuar "a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular" das respectivas etapas. Para descrever esses direitos e objetivos de aprendizagem, o MEC anunciou que tem trabalhado com uma comissão de 116 pessoas, formada por professores de 35 universidades, dois institutos federais e um centro universitário municipal, além de especialistas e professores das redes de ensino de todas as unidades da federação. Ainda segundo a assessoria de imprensa do MEC, os relatórios da produção desses grupos deverão ser levados à consulta pública on-line, em uma página da BNC no site do MEC.
Percurso
"Em junho o MEC fez uma primeira discussão aprofundada sobre os documentos curriculares das redes para ensino fundamental e médio, porque os estados e municípios avançaram nessa questão e a Base Nacional Comum não vai partir do zero", afirma Aléssio Costa Lima, presidente da Undime e secretário de Educação do município cearense de Tabuleiro do Norte, a 211 quilômetros de Fortaleza. Para ele, a forma como a proposta da BNC é conduzida faz valer o regime de colaboração entre os entes federados, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
O prazo para a Secretaria de Educação Básica encaminhar o documento ao Conselho Nacional de Educação (CNE) é junho de 2016, mas, durante o seminário sobre o tema em julho, o ministro Renato Janine Ribeiro afirmou que a "intenção é tentar avançar mais rápido, preservada uma ampla discussão". Após o parecer do CNE, a proposta deverá ser levada às redes para diálogo com grupos de professores. Depois de ter essa devolutiva, o MEC concluirá o documento para distribuição final às redes, que vão adicionar os temas regionais e transmitir a base às escolas. E, então, cada unidade trabalhará com o documento em seu próprio Projeto Político-Pedagógico.
Divergências
Se por um lado entidades como Undime e Consed estão coletando informações das redes para subsidiar a elaboração da Base Nacional Comum, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) decidiu recusar o convite da SEB para participar da coordenação desse processo. "Fomos procurados pelo MEC no início do ano, mas discordamos da proposta, pois estão chamando objetivos de aprendizagem de base comum e nós avaliamos que por esse caminho há um sério risco de se formular uma lista de conteúdos mínimos", afirma Maria Margarida Machado, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás e presidente da Anped.
Já o presidente do Consed e secretário de Educação de Santa Catarina, Eduardo Deschamps, acredita que há um consenso entre os atores envolvidos na discussão da BNC no MEC de que é preciso definir o essencial a ser oferecido em todo o Brasil. "Aqui na rede catarinense, vejo que os professores querem uma orientação e há especialistas que criticam isso por temerem que a escola possa interpretar ''''o essencial'''' como ''''o suficiente''''. Para isso não acontecer é preciso trabalhar a base na formação de professores e gestores. Porque a BNC não vai limitar o todo que deve ser ensinado. Cada rede e cada escola poderá construir seu percurso formativo a partir da BNC, por meio da proposta curricular da rede e do Projeto Político-Pedagógico", aponta.
Para Maria Margarida, ao se discutir objetivos de aprendizagem por etapa e série, considera-se o aluno um sujeito padrão. "Por exemplo, quando falamos que a fração deve ser ensinada em determinado ano, como podemos garantir que vou receber um trabalhador na Educação de Jovens e Adultos e ele vai aprender de acordo com aquele objetivo?", questiona. Segundo a presidente da Anped, determinar o que e quando o aluno deve aprender desconsidera a diversidade. "Há uma ideia de que a escola deve ter uma lista do que precisa oferecer e essa premissa ignora que a situação é diferente para cada criança ou para cada pessoa que frequenta a EJA. A Anped vem alertando que a escola precisa garantir os direitos de aprendizagem, mas sem engessar a organização dos professores", argumenta.
Maria Luiza Sussekind, professora da Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e vice-coordenadora do Grupo de Trabalho de Currículos da Anped, também critica a ideia da Base Nacional Comum. Para ela, a proposta carrega um entendimento pouco democrático do comum. "Não vejo os professores como consumidores passivos de documentos eficazes. Professores são criadores de currículos e de culturas com seus estudantes todos os dias, com a diversidade e apesar das adversidades nas salas de aula, e precisam ser valorizados como tal. Os planejadores precisam ouvi-los. E, claro, pagar salários razoáveis", defende.
Segundo o presidente do Consed, a Secretaria de Educação Básica garantiu que os professores em atividade nas escolas vão participar da implementação da base e que há margem para que cada região apresente suas especificidades ao longo do processo. "O documento não será uma unificação do currículo de norte a sul", expõe. Para a presidente da Anped, porém, essa avaliação sobre a natureza do documento só poderá ser dada quando houver uma primeira divulgação dos objetivos de aprendizagem que estão sendo descritos.
Parâmetros e Diretrizes
Para Maria Margarida, as escolas podem trabalhar suas especificidades com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais. "Há quem diga que elas são muito gerais. Mas por que não trabalhamos o específico na escola, considerando cada indivíduo? Por que precisamos de uma nova regra? Na década de 1970, quando se instituiu o ensino médio, falávamos de docentes sem magistério, mas o cenário mudou e hoje, embora ainda tenhamos a tarefa de formar 100% deles no ensino superior, há uma boa parte já graduada, que deve ser empoderada para a discussão", questiona.
A pesquisadora Paula Louzano, da Universidade de São Paulo (USP), avalia que a Base Nacional Comum vem para complementar e não para concorrer com as DCNs. Segundo ela, diferentemente dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que são sugestões, as duas têm a mesma natureza normativa. "A diferença entre elas é que as Diretrizes falam de muitas coisas, como perfis de alunos, os sujeitos da educação e a função social da escola, já a Base deverá ser a materialização do que as Diretrizes apontam", explica.
Segundo Paula, enquanto hoje as Diretrizes elencam e definem as disciplinas, a Base deverá especificar o que as crianças têm o direito de aprender em cada uma delas por ano. "De certa forma, os Parâmetros fazem isso por ciclo, mas eles não passaram pelo processo de legitimação pelo qual uma base comum deve passar", destaca.
Por dentro das redes
Além de identificar as redes que passaram a trabalhar em documentos curriculares para o último ciclo do ensino fundamental, a pesquisa do Cenpec também aponta a diversidade de modelos desses documentos. De 22 estados analisados nesse quesito, 15 apresentaram modelos identificados como matrizes, quatro elaboraram propostas, dois fizeram currículos e um propôs diretriz, caso de Santa Catarina.
Segundo o Cenpec aferiu, quanto mais próximo de um currículo, o modelo tende a ter mais especificações e metas, mais intervenção no processo didático, mais relação com as avaliações externas e maior detalhamento da progressão das aprendizagens. Na direção oposta, quanto mais próximo do modelo de diretriz, mais o documento explicita fundamentos e princípios, além de dar maior abertura à iniciativa de órgãos intermediários e à escola na construção curricular.
Os secretários ouvidos pela reportagem apontam exatamente esse movimento. Tanto as experiências curriculares das redes quanto as expectativas em relação à Base variam.
Em Tabuleiro do Norte, o secretário de Educação Aléssio Costa Lima afirma que o trabalho curricular dos municípios da região foi feito em articulação com a secretaria estadual do Ceará. "Embora a educação infantil seja de responsabilidade municipal, o documento foi discutido entre os municípios e o estado em um processo que levou três anos", conta.
Quanto ao currículo do ensino fundamental, o estado e as cidades também se articularam para indicar professores especialistas de português e matemática, que juntos criaram uma proposta de competências e habilidades a serem trabalhadas em cada uma das séries. "Foi um ano de discussão para português e um ano para matemática, com grupo focal de professores que validavam os conteúdos e discutiam novamente com os professores da ponta", conta o secretário, que é também presidente da Undime.
Aléssio Costa Lima avalia que o Ceará conseguiu um material acessível ao professor. "É uma preocupação que também temos com a Base Nacional Comum. Precisamos de um documento que contribua com o cotidiano do professor, que ele possa utilizar para planejar o seu dia a dia e aponte com objetividade o que se espera que o aluno aprenda para alcançar determinada habilidade em um dado período", afirma. Para ele, o maior avanço que a BNC levará à rede cearense será o aprofundamento de todas as disciplinas. "Até o momento avançamos em português e matemática, que são as âncoras dos anos iniciais, avaliadas pelo Sistema Nacional de Educação. Já a base vai orientar todas as disciplinas de cada série e etapa", destaca.
Já o secretário de Educação de Santa Catarina, Eduardo Deschamps, conta que a secretaria elaborou uma proposta curricular para as escolas que é menos uma matriz e mais uma filosofia para a definição dos currículos, do percurso formativo, dos temas de diversidade e educação integral. "Tivemos a participação dos municípios e agora estamos dando o passo para o currículo. A base vai ser um adicional nesse processo com um grau de obrigatoriedade. Ela dará o eixo de quais componentes precisaremos ter dentro do nosso currículo em cada disciplina e a partir dela e de outros documentos constituiremos o currículo que será usado no estado", explica.
Segundo Deschamps, que também é presidente do Consed, o processo de validação da Base Nacional Comum com os professores será parecido com a validação da proposta curricular de Santa Catarina: "Usamos uma plataforma web para apresentar a atualização de uma proposta curricular que tínhamos há 25 anos. Tivemos a participação de quase 10 mil educadores on-line e depois selecionamos 200, que passaram a compor um grupo de discussão com professores universitários. Esse grupo gerou um documento que foi validado na prática e passou a ser o referencial".
Referências curriculares
Em Goiás, o superintendente de inteligência pedagógica e formação da secretaria de Educação do estado, Marcelo Jerônimo Araújo, afirma que o debate curricular na rede existe há mais de 10 anos e começou reunindo os professores para discutir as referências que usavam e a concepção de currículo.
"Anos depois, em 2011, voltamos o foco para as sequências didáticas e a formação de um currículo-referência", lembra Araújo. O processo deu origem a cadernos pedagógicos que foram discutidos com um grupo de professores representantes dos componentes curriculares. "A partir desse movimento, em 2012 chegamos à versão preliminar para todas as disciplinas, exceto educação física e artes. Hoje, todas as escolas da rede seguem esse documento", explica.
Como acontece em vários estados brasileiros, além das escolas de ensino médio, a rede de Goiás compreende muitas escolas de ensino fundamental, principalmente do segundo ciclo. "Por isso pensamos o documento para as duas etapas. As escolas do estado seguem a referência e temos municípios parceiros que adotaram o currículo estadual", conta o superintendente da secretaria.
Araújo destaca ainda que o estado participa dos debates da BNC. "Temos alguns professores de carreira da nossa rede participando dessa comissão em Brasília, embora seja um número pequeno em relação ao quantitativo da rede e não tenhamos ainda o envolvimento da maneira que gostaríamos que fosse. Mas esperamos que o MEC comece a envolver cada vez mais as redes na formulação da base, até para que esse documento tenha legitimidade."
Para ele, a base comum vai facilitar o planejamento das escolas. "Na rede dialogamos com um planejamento comum a todos e acompanhamos facilmente a progressão da aprendizagem e os critérios para a formação dos professores. Podemos ter isso no país", acredita.
Avaliações externas
Segundo Anna Helena Altenfelder, superintendente do Cenpec, a pesquisa com os estados identificou que as avaliações em larga escala, como as provas do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), têm grande impacto em todos os documentos curriculares das redes. "Entendemos que é natural que eles conversem com as avaliações, mas há de se tomar o cuidado de elas não serem as diretrizes máximas do currículo."
Prova dessa grande influência é a prioridade que se dá a português e matemática nos currículos. De acordo com Anna Helena, São Paulo e Pernambuco são estados que englobam todas as disciplinas em seus documentos, mas grande parte das redes concentra esforços nas duas disciplinas mais observadas nas avaliações externas. "Há uma tendência reducionista também em outros países de subordinar o currículo à avaliação, priorizando língua materna e matemática por serem componentes mais avaliados, por exemplo, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa)", relata.
Para o secretário de Educação de Santa Catarina, Eduardo Deschamps, esse assunto é central na construção da BNC. "A ideia é que a base comum para as escolas venha a influenciar as matrizes de avaliação, enquanto hoje são as matrizes que influenciam o que é dado nas escolas", aponta. "Hoje, a proposta de Santa Catarina, por exemplo, não chega a detalhar uma matriz, é mais uma filosofia, e as escolas acabam usando as matrizes das avaliações como currículo", reconhece.
A pesquisadora Paula Louzano, da USP, concorda que a base pode reverter esse cenário, mas não acredita que seja algo automático. "Claramente quem deve definir as matrizes de avaliação é o currículo e não o contrário, mas para mudar a situação será preciso alinhar as matrizes, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e a formação docente ao currículo. Sem envolver tudo isso, a referência de muitas escolas vai continuar sendo a avaliação externa e o livro", analisa.
Fonte:http://revistaescolapublica.com.br
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