Crédito: Bárbara Toaliar/Comissão Creches Mobilizadas USP |
Legado de três décadas como campo de pesquisa, formação e desenvolvimento pleno das crianças está em risco.Por: LS Laís Semis.
“Há 30 anos, a ideia que se tinha de creche se resumia a ser um ambiente que fosse muito limpinho, com fralda e chupeta”, conta Ana Maria Mello, ex-diretora da Creche Carochinha do campus Ribeirão Preto, ex-supervisora das creches administradas pela Divisão de Creches (DC) da Superintendência de Assistência Social (SAS) da USP e atualmente orientadora na Escola de Aplicação. “Na USP, desde aquela época, esses espaços foram formados por um grupo muito heterogêneo de profissionais e com uma ideia aberta de creche. Se pensava na instituição como um local em que a criança tivesse o direito de ficar independente dos pais estarem trabalhando naquele dia, em que ela pudesse se desenvolver plenamente e ficar bem. A perspectiva era um movimento social ajudando a construir a Educação Infantil que não existia até então”, relembra Ana.
A proposta resultou em espaços que são referência de qualidade na Educação Infantil. Além disso, as creches e pré-escolas da USP apoiam o ensino, a pesquisa e extensão, oferecem estágio, recebem gestores, funcionários, professores e outros profissionais interessados da rede pública de ensino e também de outros países. No período de 2009 a 2014, foram 6.632 visitas monitoradas, 681 estagiários de diferentes cursos e 182 trabalhos apresentados pela equipe.
No entanto, todo esse legado está ameaçado. Os sinais de problema surgiram no ano passado. Em 2014, o processo seletivo para ingresso das crianças no ano letivo seguinte aconteceu normalmente. Nas unidades de São Carlos e Ribeirão Preto, as listas de aprovados chegaram a ser divulgadas. Mas, no fim de janeiro, os pais - e também os funcionários das creches - foram surpreendidos com uma notificação de que não seria possível realizar novas matrículas, pois a escola já estava acima da capacidade de crianças em relação ao número de funcionários. “Por conta da greve do ano interior, os pais já estavam mobilizados. Então, quando tivemos a notícia, nos unimos e começamos a cobrar respostas da SAS”, conta Isabelle Somma, que concluiu, recentemente, o doutorado em História Social graças à possibilidade de ter a filha frequentando a creche da instituição.
Crise financeira
Uma das universidades públicas mais bem avaliadas do país, a USP passa por uma grave crise financeira, que deve chegar a um déficit de 625 milhões de reais neste ano. O último reajuste dos professores ocorreu em 2014. Em 2015, foi suspenso o ingresso de novas crianças nas creches. Entre fevereiro e abril do mesmo ano, 1.472 servidores técnicos e administrativos aderiram ao Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV). Em 2016, o Conselho Universitário aprovou o Programa de Incentivo à Redução de Jornada (PIRJ), que estimula a diminuição da jornada de trabalho de 40 para 30 horas semanais desses servidores.
Segundo a assessoria de imprensa da USP, o motivo de novas matrículas não terem sido admitidas nas cinco creches administradas pela SAS teria sido a suspensão de novas contratações e a primeira fase do programa de incentivo à demissão voluntária. No entanto, o órgão não soube informar o número de servidores que deixaram de trabalhar nas creches desde o programa de demissão.
Os pais relatam, no entanto, que poucos professores da creche foram desligados e que existe espaço para novas crianças. Eles pedem que o futuro da Educação Infantil na instituição seja tratado de forma transparente. “Para mim é nítido que eles vão manter as crianças até elas concluírem a creche. Eles não tiveram coragem de pedir para os pais procurarem uma escola agora, mas estão fazendo isso aos poucos e uma hora vai acabar mesmo”, diz uma mãe que preferiu não se identificar por receio de sofrer represálias. “O fechamento está acontecendo sorrateiramente e não existe diálogo porque eles não admitem o que está ocorrendo e nem comentam o que vai haver nos próximos anos”, diz.
Atualmente, as cinco unidades da SAS atendem 324 crianças. Em 2013, esse número era de 553. Por conta de não admitirem novas crianças, exceto irmãos de alunos que já estudam nela, o número de vagas ociosas é maior entre os mais novos. “Há quatro anos, a turma de bebês de zero a dois anos era de 55 alunos. Hoje, são sete crianças em um espaço que caberiam 60. É deprimente”, relata a mãe.
E não há previsão de novo processo seletivo. Questionada sobre os planos futuros para as creches da USP, a assessoria de imprensa informou apenas que “não houve abertura de novas vagas, mas que as crianças matriculadas continuam frequentando normalmente”.
Consequências
Como um dos caminhos para reduzir custos da universidade, as vagas estão sendo substituídas pelo aumento da oferta de auxílio-creche. Os funcionários têm direito ao valor mensal de 663,87 reais por dependente, mas os estudantes não. “O impacto disso é muito grande, principalmente para os alunos da Moradia Estudantil, porque a fila da escola pública é enorme e eles não têm condições de arcar com as particulares. Eu já conheci gente que precisou abandonar os estudos porque não tinha como se manter na faculdade sem a creche”, diz a mãe que preferiu não se identificar.
“Experiências no mundo inteiro mostram que se seu filho estuda em escolas próximas nos primeiros meses de vida, você tem maiores possibilidades de dividir a responsabilidade com a Educação deles. No geral, se pensa muito nas vantagens da proximidade em casos de emergência. Mas mais emergente do que correr quando se tem febre de vez em quando é o dia a dia, é auxiliar e ver seu filho crescer”, fala Ana Maria Mello.
Isabelle destaca um outro ponto de atenção nesse cenário. “Sabemos que o valor do auxílio-creche pode ajudar na renda de muitas famílias e, alguns desses pais, como não encontram creches públicas com vagas, acabam optando por deixas as crianças com familiares em vez de pagar uma particular.”
A seleção para as vagas nas creches da USP é socioeconômica e atende bebês de 4 meses a 6 anos de idade. Cerca de 40% das matrículas são destinadas a filhos de alunos, 40% aos de funcionários e 20% de docentes. Investia-se muito em parcerias junto aos departamentos da universidade, realizando pesquisas sobre desenvolvimento infantil de crianças abaixo dos 6 anos, capacidade do bebê, saúde médica e odontológica, por exemplo. “Muitos desses trabalhos publicados impactaram todo o Brasil. Servimos de campo de pesquisa e os pais colaboram para desenvolver uma atmosfera de melhoria de qualidade. Em todos os documentos do Ministério da Educação (MEC) relacionados à Educação Infantil, os representantes dessas creches ajudaram a compor as discussões para construir essa etapa de ensino”, diz Ana.
A Comissão Creches Mobilizadas USP, formada por pais, professores e funcionários, acredita que, dentro de alguns anos, esse tipo de situação resultará na elitização da universidade, permitindo apenas que as alunas com filhos que tenham condições de arcar com as despesas de uma creche consigam dar prosseguimento aos estudos.
Se não houver entrada de outras crianças, as turmas mais novas deixarão a instituição e as creches fecharão suas portas. “Encerraríamos um campo de pesquisa de formação. Em termos de extensão, perderíamos a ação de disponibilizar ao público externo todo o trabalho desenvolvido lá dentro, além da colaboração para o debate nacional da Educação Infantil”, analisa Ana.
O custo das creches
Um estudo feito por Isabelle Somma, em companhia de outras quatro mães, com base em dados públicos da universidade, comprova que a ação de impedir a entrada de novos alunos aumentará o gasto com auxílio-creche dos servidores em 1,2 milhão de reais apenas entre 2015 e 2016. Segundo a pesquisa, com a não-abertura de vagas, a USP economiza uma porcentagem de 5,5% do orçamento total (26.110.883,00 reais) das creches referente ao custeio, já que 94,5% dos gastos são desembolsados para a folha de pagamento - e como os funcionários são concursados esse valor não será reduzido.
Elas afirmam ainda que apesar da redução do custeio, a capacidade de atendimento das unidades é maior do que o número de crianças atualmente atendidas. “Isso significa que elas funcionarão com a mesma estrutura de gastos, porém com metade das vagas ociosas, o que representa um desperdício de recursos públicos que poderia ser evitado”, explicam.
Fonte:Nova Escola
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